~ música de fundo: Verdes Anos
7 de agosto.
Celebra-se São Caetano, padroeiro do Convento dos Caetanos — o coração antigo
onde pulsa hoje o Conservatório Nacional. Dentro das paredes do antigo espaço
religioso, perduram “memórias aos milhões” de um edifício que viu duas
guerras mundiais e uma ditadura.
Por ali,
passaram músicos, atores, dançarinos, realizadores, dramaturgos consagrados.
Foi e sempre será palco da ruptura com as normas da época. É a casa de muitos
de nós que crescemos e voámos “sem ser travados”.
“Património
da cidade”, este
sítio significa um marco em todos os que ali passaram enquanto professores,
alunos, funcionários.
Não se sai
do conservatório igual ao que se entrou, confesso. Há algo de profundamente
transformador por lá. Não só do edifício em si, como da instituição
Conservatório Nacional – sai-se com mais responsabilidades, com emoções
desenvolvidas, com hábitos de vida diferentes (porque, afinal, é preciso
coordenar o horário escolar com o de estudo do instrumento e das disciplinas).
O
conservatório sempre foi, mesmo fora de casa, e sempre será assim, com o passar
dos anos. A essência está lá. A essência de criar músicos e pessoas mais
humanas.
II.
Sair custa.
Passaram-se
quase dois meses desde que saí de lá.
Parece que custa estar fora de algo que nos viu nos melhores e piores momentos
da nossa vida.
De vez em quando, ainda tenho a tentação de espreitar o site e a plataforma da
escola, como se ainda não tivesse saído oficialmente. Como se fosse só uma
pausa de verão. Como se em setembro voltasse tudo ao normal.
Mas não
volta.
Mas não
volta.
Os corredores não serão mais os mesmos — agora não são minhas. As salas onde me
senti pequeno e gigante ao mesmo tempo, onde cresci a tocar, a falhar, a
aprender... agora acolhem outras histórias.
E mesmo sabendo que é assim que tem de ser, o coração demora a aceitar.
Parece que
tenho de aprender a voar, mesmo oficialmente deixando de ser aluno. Foram 12
anos, caramba! Cresci, amadureci, fui gozado, fui integrado, fui feliz, fui
triste. E todas estas memórias parecem que vão embora, voando para outras
paragens.
Mas a
verdade é que não vão.
As memórias não desaparecem — transformam-se em asas.
Durante 12
anos, o Conservatório foi o meu mundo.
Agora o mundo lá fora chama por mim.
Assusta? Claro.
Mas se há coisa que aprendi naquele sítio foi a não recuar perante o medo.
A tropeçar com dignidade. A voltar a tocar mesmo depois da vergonha. A aceitar
que perfeição não existe — só verdade.
III.
Ser Conservatório
Nacional.
Ser-se Conservatório
Nacional é ter-se estatuto. Já aqui o disse, na crónica de aniversário –
estudar no Conservatório é algo para quem pode (e não para quem quer),
lembro-me das várias vezes que senhores de idade olham para mim com algum
espanto visível nos olhos, não sei, assim que respondo à pergunta deles “onde é
que estudas, rapazinho?” com “estudo no Conservatório, sabe?”.
Ser-se Conservatório
Nacional é preciso respeitá-lo e viver o Conservatório. Por isso é que acho que
o ensino integrado contribui para esse sentimento. Vivemos todos os dias o Conservatório,
de manhã até quase à noite.
Tomamos como
família aqueles funcionários que nos dão um singelo bom-dia ou que nos dão
conforto quando estamos mais em baixo.
Tomamos como
mestres os imensos professores que, durante anos nos passam pela vista.
Tomamos como
companhia aqueles amigos que, ao dizer “vamos ao pingo?”, acabam por nos fazer
o dia.
E isso é uma
parte de ser-se conservatório.
Mas ser
Conservatório Nacional também é aprender a cuidar e a defender o nosso espaço.
Quantas vezes manifestações aconteceram no Conservatório? Quantas vezes ouvimos
reclamações ao diretor de alunos, descontentes com questões simples, como o
funcionamento do bar?
Ser
Conservatório é também aprender a viver com o peso da expectativa.
Com a ideia de que se estuda ali, então tem-se “talento”, “futuro”, “disciplina
exemplar”.
É sorrir educadamente a esses senhores de idade que ficam espantados — não por
desconfiança, mas por respeito. Porque sabem o que aquilo significa.
Porque ouvir “Conservatório Nacional” impõe. E, sim, é um peso. Mas também é um
orgulho. Um privilégio que se ganha com esforço, e que se carrega com
responsabilidade.
E por isso,
ser Conservatório é muito mais do que tocar bem.
É saber ouvir. Saber esperar.
É aprender a respeitar o silêncio de quem está a estudar, o cansaço de quem já
tocou oito horas seguidas, o nervosismo antes de uma audição.
É fazer parte de um corpo onde cada pessoa importa — mesmo quando tudo parece
andar depressa demais.
IV.
Herança
Levo muito
de herança da Escola de Música do Conservatório Nacional. A escola onde a “diferença
é algo apreciada” dá a cada aluno uma herança pesada de, apesar de
involuntariamente, representá-la em todos os lados por onde as nossas
carreiras. Mesmo para os que não seguem músicos – e sim, há casos de malta que
termina o secundário e não segue música no superior – há herança quase diária,
quer em competências que só um aluno de ensino artístico tem, quer em humanidade,
algo presente no nosso quotidiano enquanto alunos da instituição quase bicentenária.
Levamos amigos,
inimigos. Professores que se tornam amigos e colegas de profissão e funcionários
que gostam de nós, do fundo do coração.
Leva-se
também o respeito por toda essa estrutura invisível que nos sustentou durante
anos — desde quem nos emprestava uma chave de sala até quem nos abria a porta
às sete da manhã sem uma palavra, mas com um olhar de cumplicidade.
A herança do
Conservatório não é um conceito abstrato. É concreta. Está nas horas de estudo
que nos ensinaram a organizar o tempo. Está na experiência de palco, que nos
ensinou a lidar com o stress de forma prática. Está nos momentos em que tivemos
de trabalhar em grupo, ouvir opiniões contrárias, e ajustar a nossa forma de
pensar.
Aprendemos a
estar com os outros. A aceitar que há colegas que tocam melhor, professores que
exigem mais, horários que falham, e dias em que não corre bem.
Tudo isso desenvolve uma resistência diferente. Uma noção de responsabilidade
muito própria.
Ser aluno do
Conservatório Nacional é, em certa medida, crescer num sistema de exigência
onde não há muito espaço para facilitismos.
E essa exigência molda-nos. Passamos a esperar mais de nós, mesmo fora da
música.
Além disso,
aprendemos a lidar com ambientes mistos: há alunos mais velhos, mais novos, há
quem esteja a começar e quem já esteja prestes a entrar na vida profissional.
Isso cria um tipo de maturidade social difícil de encontrar noutros contextos.
Leva-se
muito, mesmo sem nos apercebermos logo.
Só depois de sair é que se percebe que o Conservatório deixou uma marca na
forma como pensamos, como nos relacionamos, como enfrentamos o trabalho.
Hoje, deixo
de ser aluno. Mas nunca deixarei de ser filho daquele lugar.
Porque fui moldado ali. E a verdade é que, por mais longe que vá, sempre que
ouvir uma nota, sempre que vir uma pauta, vou lembrar-me de onde tudo começou.
E há algo de bonito nisso. Muito bonito mesmo.
(sem inteligência artificial)
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