Levando a Flauta na Vida



~ música de fundo: Sonata em Fá Maior RV 52, de Vivaldi

Pego nesta frase da Renata Pereira, flautista de bisel brasileira (intérprete em grupos como QuintaEssentia Quarteto, o principal representante da flauta de bisel no Brasil e um dos mais importantes grupos de música de câmara da atualidade) para falar um bocadinho daquele instrumento que me encontrou, para nunca mais largar, a flauta de bisel. Esta frase, como a própria autora diz, resume-se ao simples facto de ser “um estilo de vida”, ou seja, é “amar tocar flauta doce [sic], é levar música para as pessoas através da flauta doce [sic]”. Eu nunca tinha percebido esta questão, até hoje, que sinto que este é o meu lugar: é isto que quero levar para a vida.

Como muitos devem ter percebido ao passarem por mim, eu sempre fui um miúdo indeciso com a minha vida e, por conseguinte, sem rumo por tomar, trocando sempre de aspirações profissionais, sempre que encontrava novas paixões. Para terem noção, já tentei querer ser jornalista, cantor lírico, guionista, musicólogo, etnomusicólogo, pianista, compositor e actor. Já quis tudo e um par de botas e nada me contentava. Enquanto que via os meus colegas de conservatório com um plano definido (pudera, acho que para se entrar no Secundário ou Profissional de Música é preciso ter-se um plano profissional, se não são horas e horas perdidas a tentar limar aquela passagem difícil), eu questionava-me e questionava-me sobre o que poderia ser o meu futuro. E, com surpresa, via tudo turvo no que poderia ser a minha vida, isto é, não me conseguia imaginar em nada do acima mencionado.

Até que, naquele fatídico dia de agosto de 2023, que descobri a flauta de bisel.

Descobri não. Redescobri.

Deixem-me explicar: dando um contexto pessoal, sou filho de músicos. De um pianista único que nunca soube aproveitar as suas capacidades pianísticas, por isso tendo se dedicado ao ensino e à investigação e…de uma flautista de bisel, que, apesar de tocar de vez em quando, se dedica a dirigir uma escola de música e a programar festivais. E eu, onde entro? Bem…a paixão pela música nasce mesmo quando eu saí da barriga da minha mãe e, provando que os estudos científicos estão correctos, a música conectou-se a mim como uma pen-drive no grande computador que é a vida.  Sempre cresci com as teclas e os buracos. Sempre cresci com a música. E lembro-me que desde muito cedo quis isso para a vida.

Lembro-me que fixei muito o olhar para ver a minha mãe tocar e não o meu pai. Lembro-me que via a minha mãe estudar e pegava no telefone dela, um Iphone 4S e gravava horas e horas de sessões de estudo de flauta de bisel. Sem dar por conta, a paixão surge aí. Sei também que as flautas que tinha tido em criança eram os meus parceiros. Levava-as para todo o lado, sem adivinhar que um dia faria disto estudo.

Comecei a cantar, depois experimentei o violoncelo e, um pouco para agradar ao meu pai, fixei-me no piano. (Fixem esta parte – o "para agradar" – que será útil mais à frente na crónica.) Entretanto, fui para o Conservatório. Do processo de entrada, não me lembro de nada. Só sei que, segundo as memórias dos meus pais, me pus a tocar todo o Thompson (método para piano) à frente dos júris.

Após oito anos a tocar, deu-me na cabeça que queria cantar lírico. A minha mãe, entusiasmada, quis que a maior soprano do país dos últimos 40 anos, Ana Paula Russo, me ouvisse. Disse que não. Disse que não. Disse que não. Não me sentia pronto. E foi assim que estraguei uma oportunidade de ouro de ter aulas com ela. Certo.

Anos volvidos (e para não cansar muito os leitores) e já matriculado no Curso de Composição do Conservatório Nacional, naquele agosto de 2023, peguei numa flauta de brincar da minha mãe na casa dos meus avós e tudo mudou. Vale destacar que antes disso já tinha tido um interesse latente pela flauta de bisel, pois andava a ver vídeos da Sarah Jeffery, a dona do canal de flauta de bisel mais visto do mundo.

E foi nesse momento que, sem perceber, a flauta de bisel deixou de ser um eco da minha infância para se tornar o centro da minha existência. Agora, ao olhar para trás, percebo que talvez nunca tenha estado realmente perdido – apenas precisava de tempo para ver que o caminho sempre esteve ali, à minha espera.

Não sei se foi para agradar à minha mãe (lá está). Talvez fosse. Ou talvez, pela primeira vez, estivesse a escolher algo apenas por mim, sem expectativas externas, sem pressões ou comparações. A flauta de bisel apareceu como um reencontro, um abraço de um velho amigo que sempre esteve por perto. E, dessa vez, eu estava pronto para o aceitar. Entretanto, comecei a experimentar tocar ao som do que a Sarah publicava, quer sejam tutoriais ou vídeo-aulas sobre articulações. (e vejam só, antes de saber tocar, inventava música contemporânea na flauta, qual Luciano Berio, qual Stockausen) E, ao perceber que tocava flauta, a minha mãe pegou nos métodos mais rascas que tinha de flauta e deu-mos. Comecei a tocar com uma articulação péssima, em que articulava todas as notas, com uma respiração que me obrigava a inventar interpretações estúpidas (pois estava sem ar) de peças como a Lindos Olhos Castanhos (que a esse andar já estavam feios) ou como o Au Clair de la Lune (que cuja lua já tinha caído).

A esta altura já tinha contado à minha colega de turma que também tocava flauta da boa nova (lá está, para agradar, também). Também tinha tido, por essa altura a minha primeira flauta contralto e já tinha tido uma aula com o maior flautista de bisel do país, o António Carrilho e eis que aparece ela, toda catita: a Dafne – não é uma rapariga, mas sim a peça, de Van Eyck. Foi aqui que tudo muda e que passei a olhar a flauta com outros modos.

Algo que tinha de estudar todos os dias, porque se não pronto. Falhava.

E se no início desta crónica falei de levar a flauta na vida, acho que encontrei outro significado para essa frase: levar a flauta na vida não é só sobre amar a flauta ou vivê-la. É divertires-te com ela, pois se não, não consegues tirar todo o proveito dela. Por isso é que adotei a mesma estratégia que outrora tinha adotado para com o piano – só se consegue suceder no instrumento se conseguires conciliar o divertimento (a brincadeira), tocando peças que gostas, com a seriedade, porque se não, perdia a vontade por completo.

Comecei a entender que a flauta de bisel não deveria ser uma obrigação, mas sim uma paixão. Não podia tratar o instrumento como uma tarefa árdua, como se fosse mais um dever na lista de coisas que tinha de fazer. Em vez disso, decidi tratar cada momento de prática como uma oportunidade para explorar, para brincar com o som, para descobrir novas sonoridades e, mais importante, para sentir prazer em tocar. Essa mudança de mentalidade fez toda a diferença. A flauta deixou de ser uma simples obrigação técnica, e passou a ser uma parceira criativa, com a qual eu podia experimentar e me expressar de maneiras que eu nunca imaginara antes. Sentimentos foram vividos e serão vividos daí por diante.

A peça de Van Eyck, a Dafne, foi a chave para o carro da vida andar, pela primeira vez. Um ano e meio depois de ter aprendido a tocar flauta “por mim próprio”, em Outubro de 2024 comecei a ter aulas. Foi preciso a minha prima, ex-aluna da minha mãe (e flautista de bisel actualmente), perceber o meu trabalho e a minha capacidade, e convidar-me para ir ter aulas com ela. Ao início foi só para ter aulas de consorte de flautas (curiosamente chamado de..Dafne Ensemble [isto persegue-me!]), mas um mês depois, lá comecei a solo as aulas que iriam mudar a minha vida.

Pela primeira vez, não vi o meu futuro turvo. Vi com clareza que queria levar a flauta na vida. E foi com esse propósito que passei de um tipo que mal tocava flauta a alguém que já toca alguma coisa e que tem muito mais caminho a percorrer.

Após esses primeiros cinco meses, a sensação que eu tenho é que a flauta de bisel está a ser uma companheira de aprendizagem constante. Cada prática traz algo novo, uma técnica que melhora aqui, uma articulação mais precisa ali, e até a forma como me relaciono com o instrumento vai mudando. Já não estou apenas a tentar tocar – agora, estou a tentar compreender. Começo a perceber mais o porquê de certas escolhas de articulação, como uma leveza nas passagens mais rápidas ou uma força controlada nos momentos de maior expressividade. A flauta está a ensinar-me a ter paciência comigo mesmo, a respeitar o meu próprio ritmo de aprendizagem. Aliás, a flauta está a mudar a forma como há anos eu comecei a estudar música.

(Quando comecei a estudar música, confesso que não queria realmente aprender. A minha abordagem era sempre muito descomprometida, como se o estudo fosse uma coisa a evitar. Não estava interessado em me aprofundar, em entender a técnica ou o porquê de cada detalhe. O meu foco era mais em tocar “de qualquer forma”, sem grande intenção. Estava a marimbar para o estudo, não me preocupava em fazer mais do que o mínimo necessário para me sentir confortável a tocar.)

Ainda sou um novato, claro, e sei que o caminho é longo. Às vezes as notas saem tortas, e o som não é tão perfeito como eu gostaria. Mas é precisamente nessa imperfeição que reside o crescimento. Não me apresso, nem me sinto pressionado. Estou a aprender ao meu ritmo, saboreando cada descoberta, e isso já é algo imensamente gratificante.

O mais interessante de tudo isto é que, mesmo no meio da incerteza e do desafio, comecei a sentir a música de uma forma diferente. Há algo de mágico na flauta de bisel que me faz querer continuar, mesmo quando as dificuldades aparecem. Não se trata só de técnica – trata-se de me conectar com a essência da música, com a alegria de fazer som e transmitir sentimentos. A flauta de bisel, agora, faz parte de mim de uma forma mais profunda do que eu imaginava há alguns meses atrás. Levar a flauta na vida, portanto, não é apenas sobre dominar o instrumento, é sobre fazer dela uma extensão de quem sou. É sobre encontrar espaço para ela em cada dia, seja em momentos de prática intensiva ou em pequenos intervalos onde simplesmente me perco no som. Não se trata de uma obrigação, mas de uma paixão que se vai criando e cultivando, pouco a pouco, com paciência e amor.

É certo que o meu caminho ainda está só no início e o futuro pode ser incerto, mas o que sei agora é que a flauta de bisel faz parte de mim de uma forma que não consigo mais imaginar a minha vida sem ela. Ela é a minha bússola, o meu ponto de encontro com a música e comigo mesmo. Não importa o que o amanhã traga, eu sei que vou levar a flauta comigo, sempre. Afinal, “levar a flauta na vida” significa justamente isso: fazer dela a minha verdade, o meu caminho, a minha profissão, e nunca mais largar.

Este texto não teve ajuda de Inteligência Artificial. 


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