Pego nesta
frase da Renata Pereira, flautista de bisel brasileira (intérprete em grupos
como QuintaEssentia Quarteto, o principal representante da flauta de bisel no
Brasil e um dos mais importantes grupos de música de câmara da atualidade) para
falar um bocadinho daquele instrumento que me encontrou, para nunca mais largar,
a flauta de bisel. Esta frase, como a própria autora diz, resume-se ao simples facto
de ser “um estilo de vida”, ou seja, é “amar tocar flauta doce [sic],
é levar música para as pessoas através da flauta doce [sic]”. Eu nunca
tinha percebido esta questão, até hoje, que sinto que este é o meu lugar: é
isto que quero levar para a vida.
Como muitos
devem ter percebido ao passarem por mim, eu sempre fui um miúdo indeciso com a
minha vida e, por conseguinte, sem rumo por tomar, trocando sempre de
aspirações profissionais, sempre que encontrava novas paixões. Para terem noção,
já tentei querer ser jornalista, cantor lírico, guionista, musicólogo,
etnomusicólogo, pianista, compositor e actor. Já quis tudo e um par de botas e
nada me contentava. Enquanto que via os meus colegas de conservatório com um
plano definido (pudera, acho que para se entrar no Secundário ou Profissional
de Música é preciso ter-se um plano profissional, se não são horas e horas perdidas
a tentar limar aquela passagem difícil), eu questionava-me e questionava-me
sobre o que poderia ser o meu futuro. E, com surpresa, via tudo turvo no que
poderia ser a minha vida, isto é, não me conseguia imaginar em nada do acima
mencionado.
Até que,
naquele fatídico dia de agosto de 2023, que descobri a flauta de bisel.
Descobri não.
Redescobri.
Deixem-me
explicar: dando um contexto pessoal, sou filho de músicos. De um pianista único
que nunca soube aproveitar as suas capacidades pianísticas, por isso tendo se
dedicado ao ensino e à investigação e…de uma flautista de bisel, que, apesar de
tocar de vez em quando, se dedica a dirigir uma escola de música e a programar
festivais. E eu, onde entro? Bem…a paixão pela música nasce mesmo quando eu saí
da barriga da minha mãe e, provando que os estudos científicos estão correctos,
a música conectou-se a mim como uma pen-drive no grande computador que é a
vida. Sempre cresci com as teclas e os buracos.
Sempre cresci com a música. E lembro-me que desde muito cedo quis isso para a
vida.
Lembro-me que
fixei muito o olhar para ver a minha mãe tocar e não o meu pai. Lembro-me que
via a minha mãe estudar e pegava no telefone dela, um Iphone 4S e gravava horas
e horas de sessões de estudo de flauta de bisel. Sem dar por conta, a paixão
surge aí. Sei também que as flautas que tinha tido em criança eram os meus parceiros.
Levava-as para todo o lado, sem adivinhar que um dia faria disto estudo.
Comecei a
cantar, depois experimentei o violoncelo e, um pouco para agradar ao meu pai,
fixei-me no piano. (Fixem esta parte – o "para agradar" – que será
útil mais à frente na crónica.) Entretanto, fui para o Conservatório. Do
processo de entrada, não me lembro de nada. Só sei que, segundo as memórias dos
meus pais, me pus a tocar todo o Thompson (método para piano) à frente dos
júris.
Após oito
anos a tocar, deu-me na cabeça que queria cantar lírico. A minha mãe,
entusiasmada, quis que a maior soprano do país dos últimos 40 anos, Ana Paula
Russo, me ouvisse. Disse que não. Disse que não. Disse que não. Não me sentia
pronto. E foi assim que estraguei uma oportunidade de ouro de ter aulas com
ela. Certo.
Anos volvidos
(e para não cansar muito os leitores) e já matriculado no Curso de Composição
do Conservatório Nacional, naquele agosto de 2023, peguei numa flauta de
brincar da minha mãe na casa dos meus avós e tudo mudou. Vale destacar que
antes disso já tinha tido um interesse latente pela flauta de bisel, pois
andava a ver vídeos da Sarah Jeffery, a dona do canal de flauta de bisel mais
visto do mundo.
E foi nesse
momento que, sem perceber, a flauta de bisel deixou de ser um eco da minha
infância para se tornar o centro da minha existência. Agora, ao olhar para
trás, percebo que talvez nunca tenha estado realmente perdido – apenas
precisava de tempo para ver que o caminho sempre esteve ali, à minha espera.
Não sei se
foi para agradar à minha mãe (lá está). Talvez fosse. Ou talvez, pela primeira
vez, estivesse a escolher algo apenas por mim, sem expectativas externas, sem
pressões ou comparações. A flauta de bisel apareceu como um reencontro, um
abraço de um velho amigo que sempre esteve por perto. E, dessa vez, eu estava
pronto para o aceitar. Entretanto, comecei a experimentar tocar ao som do que a
Sarah publicava, quer sejam tutoriais ou vídeo-aulas sobre articulações. (e
vejam só, antes de saber tocar, inventava música contemporânea na flauta, qual
Luciano Berio, qual Stockausen) E, ao perceber que tocava flauta, a minha mãe
pegou nos métodos mais rascas que tinha de flauta e deu-mos. Comecei a tocar
com uma articulação péssima, em que articulava todas as notas, com uma respiração
que me obrigava a inventar interpretações estúpidas (pois estava sem ar) de
peças como a Lindos Olhos Castanhos (que a esse andar já estavam feios) ou
como o Au Clair de la Lune (que cuja lua já tinha caído).
A esta altura
já tinha contado à minha colega de turma que também tocava flauta da boa nova
(lá está, para agradar, também). Também tinha tido, por essa altura a minha
primeira flauta contralto e já tinha tido uma aula com o maior flautista de
bisel do país, o António Carrilho e eis que aparece ela, toda catita: a Dafne –
não é uma rapariga, mas sim a peça, de Van Eyck. Foi aqui que tudo muda e que
passei a olhar a flauta com outros modos.
Algo que
tinha de estudar todos os dias, porque se não pronto. Falhava.
E se no
início desta crónica falei de levar a flauta na vida, acho que encontrei outro
significado para essa frase: levar a flauta na vida não é só sobre amar a flauta
ou vivê-la. É divertires-te com ela, pois se não, não consegues tirar todo o
proveito dela. Por isso é que adotei a mesma estratégia que outrora tinha
adotado para com o piano – só se consegue suceder no instrumento se conseguires
conciliar o divertimento (a brincadeira), tocando peças que gostas, com a seriedade,
porque se não, perdia a vontade por completo.
Comecei a
entender que a flauta de bisel não deveria ser uma obrigação, mas sim uma
paixão. Não podia tratar o instrumento como uma tarefa árdua, como se fosse
mais um dever na lista de coisas que tinha de fazer. Em vez disso, decidi
tratar cada momento de prática como uma oportunidade para explorar, para
brincar com o som, para descobrir novas sonoridades e, mais importante, para
sentir prazer em tocar. Essa mudança de mentalidade fez toda a diferença. A
flauta deixou de ser uma simples obrigação técnica, e passou a ser uma parceira
criativa, com a qual eu podia experimentar e me expressar de maneiras que eu
nunca imaginara antes. Sentimentos foram vividos e serão vividos daí por
diante.
A peça de Van
Eyck, a Dafne, foi a chave para o carro da vida andar, pela primeira vez. Um
ano e meio depois de ter aprendido a tocar flauta “por mim próprio”, em Outubro
de 2024 comecei a ter aulas. Foi preciso a minha prima, ex-aluna da minha mãe
(e flautista de bisel actualmente), perceber o meu trabalho e a minha
capacidade, e convidar-me para ir ter aulas com ela. Ao início foi só para ter
aulas de consorte de flautas (curiosamente chamado de..Dafne Ensemble [isto persegue-me!]),
mas um mês depois, lá comecei a solo as aulas que iriam mudar a minha vida.
Pela primeira
vez, não vi o meu futuro turvo. Vi com clareza que queria levar a flauta na
vida. E foi com esse propósito que passei de um tipo que mal tocava flauta a alguém
que já toca alguma coisa e que tem muito mais caminho a percorrer.
Após esses
primeiros cinco meses, a sensação que eu tenho é que a flauta de bisel está a
ser uma companheira de aprendizagem constante. Cada prática traz algo novo, uma
técnica que melhora aqui, uma articulação mais precisa ali, e até a forma como
me relaciono com o instrumento vai mudando. Já não estou apenas a tentar tocar
– agora, estou a tentar compreender. Começo a perceber mais o porquê de certas
escolhas de articulação, como uma leveza nas passagens mais rápidas ou uma
força controlada nos momentos de maior expressividade. A flauta está a
ensinar-me a ter paciência comigo mesmo, a respeitar o meu próprio ritmo de
aprendizagem. Aliás, a flauta está a mudar a forma como há anos eu comecei a
estudar música.
(Quando
comecei a estudar música, confesso que não queria realmente aprender. A minha
abordagem era sempre muito descomprometida, como se o estudo fosse uma coisa a
evitar. Não estava interessado em me aprofundar, em entender a técnica ou o
porquê de cada detalhe. O meu foco era mais em tocar “de qualquer forma”, sem
grande intenção. Estava a marimbar para o estudo, não me preocupava em fazer
mais do que o mínimo necessário para me sentir confortável a tocar.)
Ainda sou um
novato, claro, e sei que o caminho é longo. Às vezes as notas saem tortas, e o
som não é tão perfeito como eu gostaria. Mas é precisamente nessa imperfeição
que reside o crescimento. Não me apresso, nem me sinto pressionado. Estou a
aprender ao meu ritmo, saboreando cada descoberta, e isso já é algo imensamente
gratificante.
O mais
interessante de tudo isto é que, mesmo no meio da incerteza e do desafio,
comecei a sentir a música de uma forma diferente. Há algo de mágico na flauta
de bisel que me faz querer continuar, mesmo quando as dificuldades aparecem.
Não se trata só de técnica – trata-se de me conectar com a essência da música,
com a alegria de fazer som e transmitir sentimentos. A flauta de bisel, agora,
faz parte de mim de uma forma mais profunda do que eu imaginava há alguns meses
atrás. Levar a flauta na vida, portanto, não é apenas sobre dominar o
instrumento, é sobre fazer dela uma extensão de quem sou. É sobre encontrar
espaço para ela em cada dia, seja em momentos de prática intensiva ou em
pequenos intervalos onde simplesmente me perco no som. Não se trata de uma obrigação,
mas de uma paixão que se vai criando e cultivando, pouco a pouco, com paciência
e amor.
É certo que o meu caminho ainda está só no início e o futuro pode ser incerto, mas o que sei agora é que a flauta de bisel faz parte de mim de uma forma que não consigo mais imaginar a minha vida sem ela. Ela é a minha bússola, o meu ponto de encontro com a música e comigo mesmo. Não importa o que o amanhã traga, eu sei que vou levar a flauta comigo, sempre. Afinal, “levar a flauta na vida” significa justamente isso: fazer dela a minha verdade, o meu caminho, a minha profissão, e nunca mais largar.
Este texto não teve ajuda de Inteligência Artificial.
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