Há uns dias, viralizou por terras lusas um vídeo em que a Orquestra Filarmónica do Luxemburgo – o país com mais emigrantes portugueses – entoava, com um coro de crianças, uma das nossas músicas tradicionais mais queridas: o Malhão. Esta atuação trouxe, como é óbvio, uma reflexão que não me sai da cabeça: como está, afinal, a educação infantil em Portugal? E por que razão já não se ouve tanta garotada a cantar a Machadinha, o Barquinho, o Eu Sou Um Coelhinho, o Oliveirinha da Serra ou o Alecrim? Onde ficou a velha e essencial premissa da educação pela arte?
Sei perfeitamente que o que “importa” hoje é formar
profissionais competentes nas áreas chamadas STEM (Ciências,
Tecnologias, Engenharias e Matemáticas). Sei também que a arte, da forma como
tem sido tratada, parece não ter futuro. Mas, ao menos, não retirem das
crianças o que de mais precioso a arte lhes pode dar: valores de humanismo, de
empatia, de imaginação, de fraternidade.
A menos que alguém iluminado me consiga explicar que, de
facto, faz bem expor as crianças a não sei bem o quê, não vejo como é que
conteúdos como Ballerina Capuccina podem substituir todos os valores que
uma verdadeira educação artística carrega consigo. Não é com brainrot
italiano, não é com funk enlatado, nem com música pop descartável que vamos lá.
E não me interpretem mal: todos os estilos têm o seu espaço e o seu valor. Mas
quando falamos de infância, de formação de carácter, de sensibilidade, não
podemos trocar raízes por modas efémeras.
É com música infantil genuína, com música tradicional, com
canções que carregam um pedaço da nossa história, da nossa cultura e da nossa
terra. É com o Chuva Ping Ping, com o Eu Perdi o Dó da Minha Viola,
com o Atirei o Pau ao Gato, com o Balão do João, com o Lá Vai
Uma, Lá Vão Duas.
E não me chamem de velho, mas no meu tempo não era assim. As
pessoas tinham cultura. As escolas eram espaços de arte e de crescimento
emocional.
(Antes que perguntem: claro que já havia exposição a
conteúdos não-infantis. Quantas vezes ouvi Katy Perry ou Shakira na pré-escola?
Mas pelo menos ainda havia educação artística. O que era fora da escola, ficava
fora. Dentro dela, havia o Chapéu Tem Três Bicos, havia música, dança, teatro,
artes plásticas – havia ARTE.)
Quer queiramos quer não queiramos, ainda existe essa educação,
pouca, mas existe. Por três factores: Educadoras da “velha guarda”, Cantar Mais
e Professores de música. De resto, as educadoras atuais preferem ouvir um funkzinho
ou alimentar os gostos dos miúdos com vídeos e shorts das personagens que
gostam e/ou de jogos de vídeo que gostam, i.e. Minecrafts e Stumble Guys
da vida.
Comecemos pelos primeiros – as boas e velhas educadoras.
Entre lengalengas como o Sarapico, cantigas como o Porco Toneladas ou até
outras pérolas menos conhecidas (porque até eu, veja-se lá, já ouvi música da
lusofonia na infância!), ainda vejo, nas poucas educadoras que persistem, uma
réstia de humanidade, de fraternidade, de amor genuíno pelo ato de ensinar pela
arte. O problema? Essas educadoras estão nas salas até às 16h… e depois começa
o inevitável desfile de vídeos no YouTube, que toma conta das cabeças e dos
corações da garotada.
É aqui que a escola falha. Não basta ter meia dúzia de
momentos artísticos soltos no horário. A arte não pode ser um adereço, um
intervalo entre conteúdos “sérios”. Tem de ser parte do ADN educativo. As
crianças precisam de cantar, de dançar, de pintar, de representar – precisam de
SER criativas, de SENTIR, de CRIAR.
(pessoal da APEM: agora não vou destilar nenhum ódio
convosco)
Depois, temos o Cantar Mais, projeto da Associação
Portuguesa de Educação Musical. E deixem-me dizer-vos porque gosto tanto deste
projeto: é que, em cada música selecionada por professores, músicos, educadores
de todos os cantos e feitios, eles próprios têm a humildade e a generosidade de
dar aos educadores e professores A PAPA TODA. Não é preciso inventar a
roda. Está lá tudo o que é preciso para ensinar bem.
Se, por exemplo, escolherem cantar o Alecrim, o Cantar
Mais não se limita a dar a letra e a música. Não, não! Vai mais longe.
Sugere o que podem fazer em várias disciplinas: podem trabalhar, em Português,
um texto poético; em Estudo do Meio, podem organizar uma visita a um apiário,
onde as crianças conhecem um apicultor e aprendem todo o processo da produção
do mel. É transversal, é rico, é humano. Dá mesmo a papa toda.
É esse o segredo: a música não está sozinha. Ela liga-se a
tudo. Ao corpo, à palavra, à natureza, à matemática, à história, ao mundo. Por
isso me revolta tanto que haja quem ache que pôr um vídeo de desenhos animados
com uma música de fundo serve como “momento musical”. Não serve. Isso não forma
ninguém. Não alimenta a criatividade, não provoca reflexão, não constrói
valores.
E sabem o que me dói? É que este tipo de ferramenta, como o Cantar
Mais, está lá, existe, é pública, é gratuita… e simplesmente não é usada.
Porque dá trabalho. Porque há quem ache que não vale a pena. Porque se pensa
que basta entreter. Mas a arte nunca foi entretenimento barato. A arte é
construção de identidade, é ligação emocional, é memória coletiva.
Eu sei que muitos professores e educadores estão cansados,
desmotivados, a lutar contra burocracias e falta de reconhecimento. Sei disso.
Mas também sei que, se não formos nós a puxar pela arte, ninguém o vai fazer. E
depois? Depois temos gerações que conhecem todas as danças virais do TikTok,
mas não sabem quem são. Que sabem os remixes todos, mas não sentem nada.
É por isso que digo: usem o Cantar Mais. Cantem com
as crianças. Dancem. Façam arte. Deixem que o Alecrim floresça. Deixem
que a infância volte a ter som, cor, e poesia.
Por fim, e não menos importante, os professores de música.
Nesta nova geração de professores – que cresceu a ouvir e a cantar o Cantar
Juntos, o Histórias de Cantar, o Segredo da Floresta, o Fungagá da Bicharada ou
o Cancioneiro da Bicharada – ainda vejo esperança. Ainda acredito que tudo pode
mudar.
É verdade que os temas abordados nas aulas já são
diferentes, adaptados aos tempos e aos desafios de hoje. Mas as músicas
mantêm-se. Mantêm-se porque são intemporais, porque carregam um valor
simbólico, afetivo e educativo que nenhuma moda passageira consegue apagar.
Nos berçários, nas creches, nas pré-escolas ou nas AECs
(Atividades de Enriquecimento Curricular), são estes professores que trazem a
acalmia necessária, a escuta ativa, o momento de pausa e de respiração profunda
que, nas outras horas do dia, os alunos muitas vezes não têm. Ali, naquele
espaço, com um xilofone, uma flauta ou apenas a voz e as palmas, existe um
lugar seguro. Um espaço de comunhão, de partilha, de construção emocional.
É no silêncio entre duas notas, na vibração de uma canção
antiga ou na alegria de um simples jogo musical que as crianças reencontram
algo que o mundo moderno teima em apagar: a beleza da simplicidade, a riqueza
do coletivo, a importância de se emocionarem, de sonharem, de se ligarem umas
às outras.
Esses professores de música são, muitas vezes, o único
contacto real que muitas crianças têm com a arte. São eles que plantam a
semente da sensibilidade, do respeito, da empatia. São eles que lembram que ser
humano não é apenas saber contar, ler e escrever. Ser humano é também saber
ouvir, saber sentir, saber criar.
E enquanto existirem professores assim, educadoras da “velha
guarda” e projetos como o Cantar Mais, ainda há esperança.
A verdade é que a educação infantil em Portugal tem
vindo a afastar-se (sem ser de forma intencional, muitas vezes) daquela premissa
tão bonita da educação pela arte. E isso sente-se. Hoje fala-se muito em
“competências” e “metas curriculares” — coisas importantíssimas, claro — mas a arte
e a expressão cultural tradicional ficam muitas vezes esquecidas ou
reduzidas a atividades pontuais, tipo festa de final de ano ou Dia da Mãe.
Antigamente, canções como A Machadinha, O
Barquinho ou Alecrim não eram só canções, eram transmissoras de
valores, de afetos, de história e até de identidade. Eram vividas no
recreio, nos tempos livres, nos serões em família. Hoje? Os miúdos sabem de cor
as músicas da Patrulha Pata ou os últimos hits da internet (o que também é
cultura, claro), mas perdem esse lado de ligação profunda com algo que vem de
trás.
Isto também se cruza com a falta de investimento real na educação
artística nas escolas. Quantas escolas têm expressão musical de
forma consistente e não só como disciplina “menor” ou “de enchimento”? Quantas
crianças tocam um instrumento ou aprendem uma canção tradicional portuguesa
porque faz parte do seu quotidiano escolar? É raro, infelizmente. E depois não
há milagres.
Ao mesmo tempo, há um certo desaparecimento das
referências culturais nas próprias famílias. Muitos pais de hoje cresceram
já sem cantar essas canções e, com o ritmo frenético da vida moderna, estas
pequenas coisas vão ficando para trás. E com elas vai-se apagando uma parte da
nossa identidade.
A educação pela arte não é só ensinar os miúdos a tocar
flauta de bisel ou a desenhar casas com telhado vermelho — é dar-lhes ferramentas
para pensar, para sentir, para se ligarem ao mundo e à sua história. E a
música tradicional tem um papel lindo nisso.
Era tão bonito imaginar um futuro onde os miúdos, mesmo no
meio da tecnologia e do TikTok, ainda soubessem o que é o Malhão, ainda
brincassem ao Coelhinho e ainda se emocionassem com a Oliveirinha da
Serra. Porque ser moderno não tem de ser sinónimo de cortar com o passado.
Talvez este vídeo da orquestra seja um wake-up call para
relembrar que a cultura popular é para viver e não só para recordar.
Este texto não teve ajuda de Inteligência Artificial.
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