~ música de fundo: Lascia ch'io pianga, de Haendel
Avô,
7 meses depois,
e a ordem e a estabilidade não se repôs na nossa família. Todos, de certa forma,
tentamos fazer o luto, mas não conseguimos. Tudo parece vazio nas nossas vidas
sem ti, mesmo as menores coisas que sempre fizeste. Sentimos todos falta
daquele toque culinário que só tu tinhas, dos teus cowboys que tu conseguias
ver ao mesmo tempo que outros programas, de tudo.
Estou a
recuperar de uma cirurgia (a tão esperada aos joelhos, vês?) e dá-me uma
sensação estranha de estar na tua cama, deitado, sem te ter por perto. Sinto falta
de tudo em ti, mesmo o ressonar que era tão intenso em ti. Lembramos sempre de
ti sempre que a mãe me vem cá dar banho e de o tanto de coisa que farias para
eu ter uma boa recuperação.
A vida mudou,
sabes? Toda aquela união que tínhamos foi toda por água abaixo. Não sabia o
quão importantes eras. E o quão era importante a avó, porque o ditado é sabedor
– por detrás de um grande homem, há sempre uma grande mulher. Por aqui tudo
mudou – quem namorava deixou de; quem trabalhava deixou de…
Todos ficámos
diferentes a partir da tua partida, especialmente a tua mulher amada – esfriou,
tornou-se uma nova pessoa. E isso assusta-me. Aquela avó atenciosa continua,
mas agora está mais fria e mais triste. E imagino o quão difícil está a ser
para ela. Chora quase todos os dias, sendo o choro mais intensificado quando vamos
para ao pé de ti, em Santa Justa. Parece que lhe custa cada vez mais, porque se
lembra daquelas vossas viagens e da vossa rotina de ida lá para cima.
Sinto a tua
falta sabes? Custa-me já ouvir a Rádio Amália sem ter te ao pé. Custa-me beber 7UP
sem lembrar do teu vício. Custa-me comer ovos de chocolate sem lembrar dos teus
últimos tempos, que fazias as nossas delícias.
Custa-me
isso tudo e mais — mesmo que não tivesse feito a cirurgia, já me custava estar
aqui. Porque estar nesta casa sem ti… dói. Estar nesta cama sem ouvir o teu
assobio, o teu ressonar, o teu riso… é estranho, é pesado. Parece que o
silêncio grita. Prometo, de vez em quando, vir cá à avó. Mas recuso sempre.
Porque sinto-me mal sem tu estares cá a assobiar para pássaros ou a cantares As
Pombinhas da Catrina num assobio quase perfeito.
Como estão
aí todos? A Tia Regina? Tens visto os meus avós? Podes fazer um favor por mim? Podes
ir ter com eles e dar um abraço meu? O biza? Como está?
Ó avô,
porque foste à casa-de-banho sem chamares a avó? Porque é que tiveste de cair? Porque
raio não ficaste mais uns meses e assistirias o teu neto a acabar o secundário
e ir para o superior? Porque é que tornaste o Natal algo tão triste? Nem sei se
vamos ter natal. Recuso-me solenemente a ouvir músicas de Natal. Recuso-me a
pensar em tudo o que envolva essa festividade que, para mim, morreu. Faço (se o
houver) por respeito aos meus irmãos – que nada têm a ver com o que sinto ou
que não sinto. Talvez um dia volte a ter a vontade de comemorar o Natal.
Ó avô, tu
sabes que é me muito difícil expressar o que sinto. É me muito difícil assumir certas
emoções. Também sabes o quão difícil é processar a morte de alguém. E isto não
tem sido fácil para mim, especialmente. Parece que sinto remorsos e uma
ansiedade por não te ter tratado bem nos últimos anos. O tilintar da tua placa
dentária custava-me ouvir e ficava passado contigo, sem ter percebido que te
estava a magoar.
Porque carga
de água tenho de me sentir assim sempre que morre alguém? Porque é que há
remorsos quando não o devia haver? Porque raio te maltratei?
Porque raio
não aproveitei enquanto cá estavas, avô?
Talvez
porque a minha vida não estivesse bem.
Por detrás de uma carapaça que parecia estar bem... não estava.
Estava a fazer uma personagem.
Não sabia quem era, nem para onde queria ir.
Não tinha rumo.
E talvez
isso tenha feito com que não tivesse consciência de que precisava de aproveitar
os momentos contigo.
Todos
estamos um pouco sem rumo, sem a tua presença. Estamos todos sem o nosso apoio,
que eras tu.
Ah, como sinto
falta de ti. Às vezes dou por mim a mudar várias vezes de canal em tua honra.
Às vezes tento esquecer isto tudo. Mas, de alguma forma, tu regressas à minha
mente, como se não quisesses ir embora.
Às vezes
tento fazer o luto. Mas não dá.
Sempre que
tento brincar com a situação, um sentimento de culpa atravessa-me. Parece que estou
a gozar contigo.
Mas não
deveria ser assim o luto?
O arroz da
avó já não sabe ao mesmo. Os ovos de chocolate não sabem ao mesmo. Nunca mais
vou comer a tua “pioca”, como eu chamava à tua especialidade, a tua tapioca.
Mesmo assim,
tu ainda estás connosco. Comigo, quer dizer. Visto as tuas roupas, ando no teu
carro, estou no teu quarto.
Ainda vives
entre nós.
Tenho andado
tão preso entre o que sinto e o que não consigo dizer. Entre as lágrimas que
não caem e as saudades que não passam.
A casa está
mais vazia. A família mais dispersa.
Mas há uma coisa que ficou: a tua marca em nós.
Porque, mesmo sem dares por isso, ensinaste-nos muito.
A cuidar sem grandes palavras.
A rir de coisas pequenas.
A dar valor aos domingos. À tapioca. Às pequenas rotinas. Ao ires me buscar à
escola e fazeres de chauffeur Escola-casa ou Escola-Conservatório. Ao militar
no teu Partido.
E é nessas
rotinas que ainda te procuro.
Quando ouço um assobio. Quando o rádio toca uma daquelas da Amália. Quando
alguém fala com aquele jeito seco mas doce que só tu tinhas.
Hoje não
quero fingir que estou bem.
Hoje só quero que saibas que deixaste um vazio imenso.
Mas também deixaste amor.
E isso ninguém nos tira.
Gostava que
visses o que sou agora. Não sou perfeito, mas estou a tentar.
Gostava que soubesses que te levo comigo em tudo.
Mas como não
estás… tento ser eu a dizer-me isso.
Com a tua voz.
Talvez o
luto seja mesmo isto: uma conversa interminável com quem partiu, mas nunca
deixou de fazer parte.
Parabéns, avô.
Este texto não teve ajuda de Inteligência Artificial.
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