~ música de fundo: A carvalhesa, tradicional de Trás-os-montes, com adaptação de Fausto Bordalo Dias
Há quase dois anos que não construo a Festa do Avante. Não
sei se é por preguiça minha ou por medo de que me aconteça algo – se um
escaldão do tamanho do mundo, se uma má indisposição causada pelo calor ou uma
crise de dores nos joelhos. Eu sei que esta última já não pode ser desculpa (no
momento em que escrevo estas palavras, encontro-me de cama, imobilizado, a
recuperar da cirurgia aos próprios joelhos) e também sei que nenhuma das outras
pode. Porque a Festa do Avante é minha também e sei perfeitamente os meus
direitos e deveres enquanto comunista e apreciador da terra dos sonhos.
E não, ser se comunista não significa só escrever umas
palavras de apreciação. É preciso lutar e construir um mundo novo.
Se sinto saudades? Talvez.
Se me sinto capaz de para o ano construi-la? Só o tempo
dirá. E só a minha disposição dirá. (e a minha bateria social – raça do autismo
que me dá isto!)
É que se a Festa, em si, já é um mundo à parte, onde se pode
esquecer, por três ricos dias, do estado quase “paliativo” do mundo, as Jornadas
de Implantação da Festa do Avante são outro, completamente distante do da Festa,
mas igualmente especial.
E o que se aprende com? Aprende-se de tudo um pouco – é como
se fosse uma preparação para os desafios de remodelar uma casa ou de limpar o
quintal. Dá-nos competências suficientes para nos podermos singrar na vida,
incluindo como cozinhar – porque sim, se alguns estão a limpar os vestígios do “abandono”
temporário do recinto que não é usado desde setembro do ano transato, outros
estão no bar ou na cozinha a preparar o manjar destes últimos mencionados.
É um mundo sim. É um mundo onde tudo é possível com a ajuda
de uma carrinha e onde se pode estar com pessoas que gostamos, que nos aceitam
tal e qual como somos.
As minhas memórias de construir a terra dos sonhos (cognome
adotado por quem experiencia a Festa em todo o seu esplendor – sem ser para ser
mais um festival de verão – mas isso guardo para a crónica em que falo mais
sobre a Festa) remontam a 2018.
A minha mãe, na altura, ainda pertencia à célula dos
Professores. (para os mais desconhecidos da realidade do Partido Comunista
Português, dá-se o nome de célula a uma organização de trabalhadores de uma
empresa que são filiados ao PCP, organizando os comunistas naquele local
de trabalho, que cabe, partindo da sua realidade concreta. No caso de algumas
áreas onde os trabalhadores são, digamos, mais instáveis quanto ao seu local de
trabalho, chama-se células à organização de trabalhadores, por exemplo, como os
Professores. Ainda uma nota à parte: no caso, ainda, da Juventude Comunista
Portuguesa, as células tanto podem ser concelhias/distritais, como ainda por
escolas.)
E durante uns 2 anos ainda pertencia a essa célula e, por conseguinte,
marcavam uma jornada de um dia, com almoço acompanhado. E, como é óbvio, eu ia
como atrelado.
Lembro-me que houve um ano em que fiquei encarregue de limpar,
com a enxada, os restos de relva seca. E no ano seguinte, lembro-me que tive a sorte de pintar alguns portões que rodeavam
o recinto da Quinta do Cabo. Detalhe importante – para além de ter manchado a minha t-shirt do Conselho
Português para a Paz e Cooperação (que obtive numa cerimónia, em Almada, pela ocasião
do aniversário da bomba de Hiroshima), fiquei com um simples cheiro: ao da
tinta. Cheirava tão mal que parecia que tinha alguém morto dentro dela. Era um
cheiro insuportável que sempre que vou lá para alguma implantação – mesmo que
nocturna – tento não pintar nada.
Entretanto, dá-se a pandemia, e por voltas de 2022, já
militante comunista, voltei aos trabalhos. Desse ano recordo uma coisa
particular: de lavar o palco principal com…vassouras. Éramos não-sei-quantas
pessoas ali, de vassouras na mão, a limpar o palco que anos antes tinha subido
para um concerto memorável, e as lonas. Também me recordo de um escaldão enorme
que tive. E aí percebi que tenho pavor a escaldões.
Se é só disso que me lembro? Não. Mas foi assim.
No ano seguinte, sei de duas coisas: nunca comi tanto gelado
na vida como comi lá. E também percebi, com todas as letras, que há coisas que
simplesmente não combinam: calor e autismo não são a melhor dupla do mundo.
Mas, mesmo assim, guardo memórias bonitas. Porque, no meio do desconforto, do
suor e dos escaldões, havia sempre alguém que sorria, sempre alguém que
partilhava uma piada ou oferecia uma água gelada sem pedir nada em troca.
A Festa do Avante — e, mais ainda, as Jornadas de
Implantação — têm essa magia: a magia de nos unir na diferença, de criar um
espaço onde até quem não se sente à vontade em lado nenhum encontra, nem que
seja por umas horas, um bocadinho de chão firme debaixo dos pés.
Se volto para o ano? Não sei.
Se quero voltar? Sim, quero.
Mesmo que me doa tudo, mesmo que a bateria social vá pelo
cano abaixo, mesmo que o calor me derreta a paciência — quero voltar. Porque é
ali que me lembro do que significa lutar com as mãos e com o corpo, não só com
palavras bonitas.
É ali que me lembro que ser comunista não é só um rótulo ou
uma frase para pôr na bio: é uma construção, literal e metafórica, feita de
tinta, de portões, de enxadas, de lonas, de vassouras, de gelados e de gente.
Muita gente.
Gente que acredita, como eu, que o mundo não tem de ser
assim para sempre.
E pode parecer só um festival, pode parecer só um
fim-de-semana, pode parecer só um campo de trabalho…
Mas não é.
É um sopro de esperança. É uma terra dos sonhos.
E, goste-se ou não, é a minha também.
Este texto não teve ajuda de Inteligência Artificial.
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