Anjos vs. Joana Marques


 ~ música de fundo: Estupidamente Apaixonado, de Toy [música original da rubrica de  Joana Marques "Extremamente Desagradável]

De todas as notícias que têm sido tornadas mediáticas, há uma que se sobressai: a do julgamento do ano. Não, não estou a falar do retomar do caso mais mediático dos últimos anos – a Operação Marquês – feito, aliás, inédito, porque nenhum primeiro-ministro do nosso país fora indiciado arguido num caso judicial, mas sim DO julgamento, que opõe a humorista Joana Marques com os irmãos Rosado, mais comumente conhecidos por Anjos.

E, citando outro primeiro-ministro, o actual Presidente do Conselho Europeu, António Costa, “vamos lá a ver”. Este caso começa precisamente assim que os Anjos actuam em mais uma prova sediada em Portugal do Campeonato do Mundo de Motorizadas, vulgo MotoGP, desta vez em Portimão (não é desta vez, é sempre, porque o autódromo do Estoril não tem condições), cantando uma obra de Alfredo Keil, com letra de Henrique Lopes de Mendonça, vulgo o hino “A Portuguesa”.

Como manda a tradição, alguém tem de o cantar antes de começar a prova. E desde já foram apontados bastantes erros no arranjo musical. Porque não fazer algo simples como foi o dos HMB? E porque raio tivemos de ouvir “igrégios”, em vez de “egrégios”? Segundo o que consta, “igrégios” não significa extremamente distinto; insigne, muito importante ou algo digno de admiração; notável, magnífico.

Isso é egrégios.

Porque não fazer algo com pés, mãos e cabeça? E porque raio decidiram cantar “contra os canhões woh woh woh”? (as pessoas dizem que é isso que disseram os Anjos. Mas continuo com a ideia que é pow pow pow. Não é mais lógico, tendo em conta que são CANHÕES?)

Algum dos Anjos tem licenciatura em Composição para fazerem aquilo?

A humorista portuguesa mais ouvida em Portugal, a única coisa que se limitou a fazer foi o que faz sempre – desde os tempos do saudoso e mítico Altos & Baixos – a fazer corte e costura e descontextualizá-lo. Foi o seu trabalho. E esse trabalho, com certeza não implicou o corte de publicidade ou de concertos.

Foi o próprio do Hino. Da versão desprezível do hino. Do assassinato do hino.

E não sei se sabem, mas deturpar ou ultrajar esses símbolos é considerado crime, sujeito a pena de prisão ou multa, conforme o artigo 332 do Código Penal.

E o que é que os Anjos fizeram? Idem.

As pessoas sabem, à minha volta, o quão a Joana Marques é especial para mim – durante alguns anos em que me sentia perdido, sem rumo, numa tristeza invisível dentro da máscara, sabia que a Joana estava (quase sempre) lá, às 8h15, para nos pôr a par da actualidade ao nível da fanfarronice mediática. Quer fale da Cláudia Nayara ou da última gala da TVI, a Joana alegrou-me os dias quase todos. E por isso, neste julgamento, sim, estou do lado da Joana.

Antes da Joana ter tido a coragem de pôr o vídeo em que punha os jurados (como ela) do tão aguardado regresso dos Ídolos a avaliar o vídeo (como é apanágio dela, descontextualizado, como é óbvio) dos Anjos, já a versão do Hino Nacional era repercussão. Se foi assim tão grave, ponham o Diogo Batáguas, por exemplo, também, em tribunal. Ponham, porque também ele “gozou” com o símbolo nacional.

O problema aqui não é dela, é deles. Os Anjos, os tão auto-proclamados amigos dos humoristas têm a culpa toda, não só por abrirem uma rachadura que NINGUÉM (sublinho, NINGUÉM) se lembrava que existia. Era uma ferida já tratada por Bepanthene. Ninguém (sublinho, ninguém) já se recordava. Era algo que não valia a pena lembrar a menos que dois homens (que perderam a fama nos anos 2000 – e que precisavam de algo que os voltasse ao mediatismo) decidissem pôr em causa não só o trabalho da Joana como também de tantos outros humoristas que SÓ fazem o seu trabalho, porque se, de alguma forma, a Joana perder o caso, abrir-se-á uma caixa de Pandora que NINGUÉM (sublinho, ninguém) quer ver o que está lá dentro.

Antes de avançarmos, deixem que vos diga que se pode intitular humorista aqueles que, de certa forma, fazem piadas sem denegrir ninguém ou uma classe social e/ou minorias étnicas, raciais, culturais. Não, não se pode considerar alguém que ofende alguém pelo se peso, altura ou classe social. (ouviste, Salvador Martinha? Só porque alguém gozou com a tua irmã, a sexóloga, comediante e um par de botas Marta Gautier, não é necessário ofender ao ponto de chamar, e cito, “casais americanos que se inscrevem no ‘Biggest’ para bater aquele recorde de comer cachorros” ao casal de humoristas Joana Marques e Daniel Leitão. Muito menos fantasiar sobre a vida sexual dos dois, porque só a eles os diz respeito. Porque raio disseste, e cito, “Como é que eles se excitam um ao outro? Têm de imaginar coisas diferentes. Ele imagina a Sónia Araújo, e ela tem de imaginar alguém com talento”. É preciso ter uma lata…)

Continuando com este chorrilho de comentários — que mais parecem um testamento em defesa do bom senso — volto a insistir: o que está em causa é sério. Gravíssimo.
Tão grave que ameaça atirar para o lixo tudo aquilo que construímos ao longo de décadas de liberdade criativa.

Se esta visão limitada e persecutória do humor vingar, não sobra Herman José. Não sobra Nicolau Breyner. Nem Fernando Mendes. Nem, atrevo-me a dizer, Gil Vicente, o nosso primeiro grande satírico.
Porque, de repente, todos eles cruzaram linhas. Todos eles gozaram com o poder, com o ridículo, com a vaidade.
Todos eles seriam culpados, hoje, à luz desta sensibilidade frágil que confunde sátira com ataque pessoal. E isso… assusta-me.

Assusta-me que, em vez de discutirmos os méritos ou deméritos de uma piada, estejamos a discutir o direito de a fazer. Assusta-me que o riso inteligente esteja a ser colocado na mesma prateleira do insulto gratuito. Assusta-me, sobretudo, que quem sempre teve poder de palco e microfone (mas perdeu a relevância) esteja agora a tentar recuperar protagonismo através da censura disfarçada de queixa.

Se começarmos a pôr em tribunal quem nos faz pensar através do riso, o que vem a seguir?
Prender autores de teatro? Censurar colunas de opinião? Mandar apagar podcasts? O que está em julgamento aqui não é a Joana Marques. É a liberdade de rir — e de fazer rir — com inteligência, com coragem e com propósito.~

E atenção, que isto não é só sobre ela.
É sobre todos os que, como o Batáguas, como o Jel, como o Ricardo Araújo Pereira, como a Beatriz Gosta, como o Hugo van der Ding, se sentam todos os dias a olhar para este país e a dizer:
“Vamos rir disto, porque se não rirmos, choramos.”

Se a justiça se virar contra quem faz rir de forma inteligente, crítica e certeira,
o que nos resta?
Um país de gente ofendida, mas sem sentido de auto-análise?
Um país onde o poder de rir se transforma em poder de silenciar?

Este julgamento, por mais absurdo que pareça, é um marco.
Vai definir até onde se pode ir com uma piada.
Vai mostrar se vivemos num país que entende o papel do humor ou num país que quer pôr-lhe a mordaça.

E por isso, que fique claro:

Se for crime fazer o que a Joana Marques fez,
então somos muitos cúmplices.

Porque rimos. Porque ouvimos. Porque agradecemos.

E porque, tantas vezes, ela foi a única voz que disse em alto o que nós só conseguíamos murmurar no carro, sozinhos, à ida para o trabalho.

Anjos, se estiverem a ver isto, adotem o sermão de São Señor Abravanel às Colegas de Trabalho – “do mundo não se leva nada, vamos sorrir e cantar”.

Este texto não teve ajuda de Inteligência Artificial. 


Comentários